Quem sai à noite pelas ruas do Recife corre o risco de ser convidado a visitar o cemitério acompanhado de uma mulher que vira caveira. Ou pode se deparar com um morto-vivo com a boca cheia de dentes de ouro. Ou pior: levar um chute de uma perna cabeluda que pula sozinha, sem estar ligada a nenhum corpo. Roteiro de filme de horror? Não! Esse é apenas um breve resumo de algumas das lendas mais assustadoras da capital pernambucana, considerada por muitos a “cidade mais assombrada do Brasil” – fama que parece ganhar mais relevância numa sexta-feira 13.
Com uma história de 487 anos, o Recife teve um imaginário popular formado ao longo dos séculos por diversas culturas – indígena, ibérica, africana, entre tantas outras. Um lugar que também foi cenário de várias batalhas, conflitos, tragédias capazes de marcar a memória de seguidas gerações.
São fatores que, para os estudiosos do folclore e das superstições, alimentam a crença em fantasmas, duendes, monstros e outras criaturas sobrenaturais. Ou, como dizem os recifenses, a crença nos “malassombros”.
“Os mitos surgem por vários motivos: seja para explicar a origem das coisas, ou depois de uma catástrofe, ou mesmo após um acontecimento sem uma causa natural aparente”, explica a socióloga e folclorista Rúbia Lóssio.
Para ela, as narrativas folclóricas com mais força são as que tentam traduzir uma sensação coletiva de insegurança diante do inexplicável. “O que assombra terá mais adeptos pelo simples fato do medo: o medo, pela sua urgência, une mais rápido as pessoas”, completa Rúbia.
O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre tinha a mesma percepção. Tanto que, em 1955, publicou o livro “Assombrações do Recife Velho”, um apanhado com mais de 30 histórias lendárias da cidade. Ele revela, por exemplo, que a “Cruz do Patrão”, um dos mais antigos monumentos do município, seria o epicentro de furiosas manifestações paranormais.
A coluna de alvenaria de oito metros foi erguida na área do porto antes da época da invasão holandesa e servia como referência náutica para os navios à vela que chegavam ao Recife.
Acreditava-se que pessoas escravizadas haviam sido enterradas nos arredores sem os devidos ritos mortuários. E, por isso, “todo aquele que passasse de noite perto da cruz ouviria gemidos, veria almas penadas ou seria perseguido por infernais espíritos”, regista Freyre.
A obra demonstra também que, ao contrário dos fantasmas restritos às grossas paredes dos castelos europeus, as assombrações recifenses habitam as ruas. Em um dos capítulos, Freyre fala do “Boca-de-Ouro”: uma espécie de zumbi que, ao cruzar com um passante na calçada, mostra “um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por dentadura toda de ouro”.
Há ainda uma particularidade no Recife que corrobora com a fama de cidade mais assombrada do país: vários nomes de localidades com origem em lendas assustadoras.
A Praça Chora Menino, no bairro da Boa Vista, tem essa denominação porque eram ouvidas no local as vozes chorosas de criança mortas durante uma revolta de soldados no século 19.
Já a área chamada de “Encanta Moça”, no bairro do Pina, tem relação com a história de uma mulher jovem que, fugindo do marido ciumento, se “encantou” nos mangues da região e se tornou uma aparição capaz de levar os homens a se perderem em meio à folhagem densa e enlameada da beira do rio.
Andriolli Costa, jornalista e pesquisador do folclore brasileiro, criador do blog “O Colecionador de Sacis”, ressalta que as antigas lendas não são apenas contos para assustar (e divertir) transmitidos pela comunicação oral.
Para ele, essas narrativas “são um caminho para revelar muito sobre nós, sobre as nossas raízes, sobre a nossa história. E acrescenta: “A gente encontra nelas (as lendas) o retrato da nossa sociedade que explica quem nós somos, explica quem nós fomos e explicará quem nós seremos.”
No caso do Recife, o costume de recontar histórias assombradas parece estar relacionado à cultura da economia canavieira, com seus engenhos, casas grandes nos subúrbios e sobrados nas áreas urbanas.
No livro “Assombrações e Coisas do Além”, publicado pela primeira vez em 2009, a escritora e socióloga Fátima Quintas explica que na sociedade de senhores patriarcais “os mortos mandavam nos vivos, ou para retardar a decadência iminente da família fidalga, ou pela força do nome de sua oligarquia ciente de sua arrogância”.
Em outras palavras, até meados do século 20, havia uma naturalidade no culto ao mortos dentro dos casarões pernambucanos. Era comum a crença de que esses antepassados se manifestavam diante dos vivo, fosse com aparições vaporosas, fosse com sussurros de bocas invisíveis, ou mesmo com o balançar de objetos e móveis se que ninguém os tocassem.
E espíritos poderiam surgir nos sonhos das pessoas, quase sempre para indicar a localização de uma “botija” – um tipo de tesouro escondido no quintal ou em algum cômodo do imóvel.
Essa comunicação direta com o “além” moldou o imaginário recifense a ponto tornar a cidade um território livre para surgimentos de seres ainda mais fantásticos que meros fantasmas arrastadores de correntes.
O sul-mato-grossense Andriolli Costa ainda se impressiona com o boato sobre uma “Perna Cabeluda” que pulava sozinha e atacava os transeuntes noturnos nas ruas e avenidas da capital de Pernambuco na década de 1970.
“A Perna tem uma coisa muito interessante porque tem ela teve um ‘nascimento’ midiático”, reflete o jornalista, lembrando que, na época, reportagens sobre os ataques da surreal assombração foram veiculadas nas rádios e nos jornais.
“Mas só porque já existem assombrações ‘perseguidoras’ é que a gente pode, ao ouvir uma história midiática como a Perna Cabeluda, incorporar à tradição, e com passar dos anos aquilo fazer parte do nosso folclore”, acrescenta Andriolli.
E como se não bastasse ter a vias escuras assombradas pela terrível perna autônoma, nas últimas décadas do século passado os recifenses também viveram sob a “ameaça” de se depararem com a “Galega de Santo Amaro”.
Conta a lenda (recente para os padrões do imaginário tradicional) que essa bela mulher loira circulava à noite pelas imediações do mais conhecido cemitério da cidade e atraía os homens para um romântico passeio entre os túmulos do campo santo. Ao chegar em frente a um determinado jazigo, a moça dizia ser ali a sua casa e se transformava numa caveira, fazendo o pretendente sair apavorado.
Rúbia Lóssio, que expôs parte de suas pesquisas no “Almanaque Pernambucanos do Causos, Mal-assombros e Lorotas”, publicado em 2014, avalia que as histórias assombradas da capital também têm um aspecto cômico – são uma forma sutilmente jocosa de lidar de com assuntos tão espinhosos como inevitabilidade da morte.
“O povo pernambucano é inventivo, tem ‘munganga’, quer dizer, faz brincadeiras, e consequentemente traz para as histórias um tanto de anedota, mesmo que as narrativa sejam medonhas na essência”, analisa a socióloga.
Brincadeira ou não, os supersticiosos garantem que o mais prudente é evitar os tantos lugares assombrados do Recife nas horas mais silenciosas da noite. Principalmente numa sexta-feira 13. Vai que…
Fonte: g1