O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais as chamadas emendas do relator-geral do Orçamento, também conhecidas como Orçamento Secreto ou emendas de RP-9. Em julgamento finalizado no último dia 19, por 6 votos favoráveis a 5 contrários, os ministros determinaram o fim do modelo de distribuição orçamentária, dando início a mais uma tensão entre os Poderes. Instituído em 2020, o chamado Orçamento Secreto refere-se à modalidade que tem o relator-geral da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) como principal responsável pela distribuição de recursos públicos. Entre os congressistas, a escolha pelos caminhos para alocação dos recursos é defendida como parte das atribuições legislativas. Na visão dos magistrados, entretanto, o formato é incompatível com a Constituição, pouco transparente e abre caminho para “barganhas políticas”. Ainda que represente a mais recente rusga entre os Poderes, o julgamento do Orçamento Secreto e a tensão entre Legislativo e Judiciário está longe de ser exceção. Ao longo de 2022, as instituições protagonizaram uma série de disputadas, troca de farpas e mútuos questionamentos, que envolveram tanto a Suprema Corte quanto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), criticado por muitos congressistas pelo aumento de decisões monocráticas, por intervenções em atribuições de outros Poderes e, especialmente, pela escalada das censuras e limites à liberdade de expressão.
Um dos primeiros momentos de tensão entre Legislativo, Executivo e Judiciário aconteceu no primeiro trimestre deste ano, quando Alexandre de Moraes, na função de ministro da Suprema Corte, determinou o bloqueio o Telegram em todo o país. Entendido como principal canal para divulgação de fake news, a plataforma foi suspensa após pedido da Polícia Federal, diante da negativa do aplicativo de mensagens em cooperar com autoridades brasileiras. O bloqueio foi solucionado em dois dias, após o ministro determinar prazo de 24 horas para que as determinações judiciais fossem cumpridas. Ainda assim, o episódio foi alvo de intensas críticas tanto do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), quanto de congressistas, que falaram em censura. Na época, o mandatário também chegou a afirmar que era “inadmissível” o bloqueio, fruto de uma decisão monocrática que afetaria “70 milhões de brasileiros”, reforçando assim uma das suas principais defesas de 2022: que todos os Poderes joguem “dentro das quatro linhas” da Constituição.
Menos de um mês depois, a relação entre os Poderes ganhou contornos ainda acirrados com a condenação do deputado federal Daniel Silveira (PL) a 8 anos e nove meses de prisão por ataques à democracia, ameaças a ministros, incentivo à invasão do STF e agressão aos magistrados. Em um dos episódios de maior tensão da política em 2022, Silveira chegou a se refugiar na Câmara dos Deputados ao se recusar a usar tornozeleira eletrônica e chamou o ministro Alexandre de Moraes “marginal” e “menino mimado”, ampliando as tensões. Relator do processo e principal alvo, o magistrado defendeu a condenação do parlamentar e a perda de mandato com pena de inelegibilidade pelo período de oito anos, voto acompanhado por outros nove ministros. Apesar da decisão da Corte, em 21 de abril, o presidente Jair Bolsonaro concedeu indulto a Daniel Silveira, em nome da “democracia e liberdade”, suspendendo o cumprimento de pena.
Essas rusgas e embates entre os Poderes levaram a manifestações e críticas de magistrados e ex-membros do Judiciário. Em mais de uma ocasião, por exemplo, o ex-ministro Marco Aurélio Mello defendeu mudanças na atuação da Suprema Corte, falando em “tempo de respeito à Presidência”. “É tempo de tirar um pouco o pé do acelerador, é tempo de atuar com temperança, com compreensão e respeitando, acima de tudo, a cadeira maior do Executivo. Há espaço para críticas, mas uma crítica equidistante, sem paixões condenáveis”, afirmou, em fevereiro deste ano. Meses depois, após decisões recentes do ministro Alexandre de Moraes, seu antigo colega, na condução dos processos contra Daniel Silveira, Mello voltou a se pronunciar, falando em momento de “evitar antagonismos indesejáveis às instituições” e recomendando que o antigo colega deveria “tirar o pé do acelerador”. “Ministro Alexandre de Moraes, infelizmente, esquecendo que ele hoje é integrante do Supremo e também do próprio Tribunal Superior Eleitoral e que, portanto, não é mais secretário de Segurança Pública, não é mais ministro da Justiça e não é mais, eu diria mesmo, xerife”, acrescentou Marco Aurélio.
A crítica do ministro aposentado — assim como de congressistas e outras autoridades — pouco surtiu efeito e as tensões entre o Poder Judiciário com Executivo e Legislativo escalaram a níveis antes inimagináveis. Ao longo de 2022, o Brasil acompanhou uma série de decisões da Corte — ou de seus ministros — apontadas como invasões a competências de outros poderes e contrárias à liberdade de expressão: suspensão de perfis de parlamentares, como Janaína Paschoal, Carla Zambelli, Bia Kicis, Cabo Junio Amaral; operação contra oito empresários acusados de defender um golpe de Estado; abertura de inquérito contra Bolsonaro por fala que associava a vacina contra Covid-19 à Aids; bloqueio de contas bancárias de 43 pessoas e empresas suspeitas de financiarem atos antidemocráticos; prisão de youtuber bolsonarista por críticas a ministros; o pedido de prisão contra o ex-deputado Roberto Jefferson, após ofensas à ministra Cármen Lúcia, a que se referiu como “prostituta”; e a retirada do Auxílio Brasil do teto de gastos, proferida por Gilmar Mendes. “O Supremo não para de interferir, de avançar, de legislar por quem foi eleito diretamente pelo povo”, criticou o senador Eduardo Girão à Jovem Pan News, após a Corte tornar o Jorge Kajuru réu por injúria e difamação por declarações nas redes sociais.
Com a proximidade das eleições, o clima que já era de tensão ganhou novos contextos, com o Tribunal Superior Eleitoral figurando como principal alvo das críticas parlamentares. Faltando pouco menos de quatro meses para o pleito, por exemplo, antes mesmo de ser empossado como presidente da Corte, ministro Alexandre de Moraes defendeu que candidatos que divulgassem fake news capazes de influenciar o eleitor teriam o registro cassado, fala endossada por Edson Fachin, então presidente da Justiça Eleitoral, que falou em “sancionar” alguns comportamentos — o que de fato aconteceu. Do início da campanha eleitoral até 15 de outubro, a Corte já havia determinado a remoção de mais de 300 conteúdos de redes sociais associados à difamação de candidatos e à disseminação de notícias falsas. E a prática ganhou ainda mais força durante a campanha do segundo turno, quando o Tribunal aprovou uma resolução que ampliou os poderes de polícia do próprio TSE e autorizou ministros a determinarem a exclusão de conteúdos de desinformação das redes sociais. Em outra vertente, o acirramento de ações políticas na Corte durante a eleição acabou culminando em novas censuras à liberdade de expressão, incluindo da própria Jovem Pan, abrindo mais um capítulo de rusgas entre os Poderes e servindo de base instalação da CPI de Abuso de Autoridade, de autoria do deputado federal Marcel Van Hattem (Novo-RS).
Em um dos últimos episódios políticos de 2022, o fim do processo eleitoral trouxe uma nova camada às tensões: as manifestações de eleitores contrários à eleição de Lula para o Palácio do Planalto. Vestidos de verde-amarelo, dezenas de manifestantes ocuparam as portas de bases militares em todo o Brasil e fecharam diversos pontos de rodovias do país em 25 Estados e no Distrito Federal, chegando a mais de mil pontos de bloqueios na primeira semana com pedidos de “intervenção federal”, destituição de ministros da Suprema Corte e a realização de novas eleições. Neste cenário, os protestos ganham ainda mais força com o pedido do Partido Liberal para anulação dos votos computados em 280 mil urnas eletrônicas sob alegação de supostas irregularidades no segundo turno, o que impulsionou as narrativas de fraudes e mobilizaram novas manifestações pelo Brasil. Em resposta, Alexandre de Moraes determinou a apresentação de provas que referendassem as suspeitas e — com a ausência de comprovação — estipulou multa de R$ 23 milhões à legenda por mal uso da Justiça Eleitoral, em decisão monocrática referendada pelo plenário. O ministro também determinou a imediata liberação das rodovias e a identificação dos líderes dos movimentos, autorizando, em 15 de dezembro, a Polícia Federal a cumprir quatro ordens de prisão e 103 mandados de busca e apreensão em sete Estados e no Distrito Federal contra suspeitos de organizar e financiar os bloqueios.
Para o ano que se inicia, ainda que traga a renovação de 40% da Câmara dos Deputados, de 38,5% do Senado Federal e chegada de um novo governo Executivo, a expectativa é de possíveis novas tensões entre as instituições. Em discurso na diplomação do presidente eleito Lula e de seu vice, Geraldo Alckmin, o ministro Alexandre de Moraes, que segue à frente da presidência do Tribunal Superior Eleitoral até agosto de 2024, também defendeu a segurança e confiança no processo eleitoral e condenou o que chamou de “ataques antidemocráticos e covardes” a ministros e membros do Poder Judiciário. Sob longa salva de aplausos, o magistrado prometeu identificar e punir “grupos criminosos que pretendem a partir da desinformação desacreditar a própria democracia”, dobrando as tensões entre os Poderes. “Esses extremistas não conhecem o Judiciário brasileiro. O Judiciário tem coragem, tem força, tem serenidade e altivez. […] Essa diplomação atesta a vitória plena da democracia e do Estado de Direito contra atos antidemocráticos, a desinformação e contra o discurso de ódio proferidos por grupos organizados que identificados serão integralmente responsabilizados para que isso não retorne nas próximas eleições“, concluiu.
Fonte: JP